Um Conto de Fadas Distópico

Bruna Furlan
3 min readApr 15, 2020

--

Por Bruna Furlan de Nóbrega

Capas da trilogia de livros de Kiera Cass

Uma distopia pode ser caracterizada como uma visão de mundo pessimista, como a apresentada em 1949 por George Orwell, em seu livro 1984. O termo se origina a partir do conceito de Utopia, um mundo ideal, que foi batizado a partir do livro de Thomas More e conta a história de um lugar perfeito, onde não existem dificuldades e frustrações.

Entretanto, uma utopia é algo muito mais complexo do que parece, pois com a idéia de perfeição, perde-se o elemento humano. É possível citar O Manifesto Comunista, de Karl Marx, para sustentar essa afirmação, pois o comunismo pode ser visto como um ideal utópico de governo, que na prática não funciona, como visto ao decorrer da História. Sendo assim, é viável afirmar que a implantação de utopia acaba transformando-se em uma distopia.

Além da obra de Orwell, também é plausível citar Adorável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e muitas outras peças literárias e cinematográficas que apresentam mundos distópicos. Porém, a autora Kiera Cass pode ser considerada responsável por ensinar esse conceito para um público mais jovem, escondendo-o em forma de um romance com traços de contos de fada. Aproveitando o fenômeno de livros jovem-adulto distópicos da época, como Jogos Vorazes e Divergente, a autora lançou sua primeira obra em 2012, A Seleção, chamando-a de uma “distopia diet”.

O livro é o primeiro de uma trilogia, que conta a história de America Singer, uma jovem que é sorteada para ir ao palácio e disputar com outras 34 garotas pelo coração do príncipe. A trama se passa após o fim de uma Terceira Guerra Mundial, que teve como consequência a volta da monarquia e a divisão da sociedade em castas, em um reino nomeado Illéa. A segmentação de castas determina o papel social, a carreira e o estilo de vida dos pertencentes as mesmas, e oferece oportunidades mínimas para que algum indivíduo se eleve à uma casta superior.

A pré-determinação da função dos cidadões e a impossibilidade de mudar a mesma já pode ser considerada uma realidade distópica, porém a maneira como as mulheres são tratadas nessa sociedade são ainda piores. A única forma de um homem elevar seu status social nesse universo é se alistando no exército, enquanto para uma mulher, é via matrimônio. A trilogia apresentada a ideia de que a única utilidade de uma mulher é casar-se e cuidar da família, narrando uma cena onde a protagonista revela, ao seu namorado secreto, suas habilidades culinárias para comprovar que está apta para um casamento.

O regresso dos direitos femininos na narrativa mostram uma realidade distópica, rigorosa e submissiva, onde garotas são isoladas da sociedade e presas caso engravidem antes de casarem-se. Outra medida ríspida da monarquia apresentada por Cass é a criminalização das relações sexuais prévias ao matrimônio, que podem ser interpretadas como uma medida de prevenção à doenças sexualmente trasmissíveis, evitando que surtos que ocorreram no passado se repitam. No universo da obra, somente a elite possui acesso a métodos contraceptivos, deixando transparecer a falta de igualdade e empatia, características de uma distopia.

Todos os elementos citados acima são meros detalhes da trilogia, que foca a atenção do leitor no triângulo amoroso vivido pela protagonista e deixa o aspecto político em segundo plano. Entretanto, a maneira sútil em que Kiera Cass apresenta a ideia de uma distopia foi primordial para que o seu público, composto majoritariamente por jovens meninas, aprenda o conceito de forma inconsciente. A autora também se mostrou capaz de não somente educar suas leitoras sobre o mesmo, mas também de mostrá-las a importância do feminismo, ao contar um clichê com um esqueleto de Cinderela.

--

--